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Foto do escritorMaylton Fernandes

Entrevista: Professora Dra. Janaina Weissheimer (UFRN)

Entrevista realizada por: Ana Clara de Araújo Marques, Ana Magally Pereira de Freitas, Layne Maria dos Santos Batista Lira (Letras - UFPB)


1) Como surgiu o seu interesse pela área da neurociência da linguagem e como foi sua trajetória acadêmica até decidir e começar a atuar nessa área?


Sempre fui apaixonada por cognição e já na graduação me interessei por entender melhor os processos mentais. Fazia graduação em Letras e vivi durante muito tempo um conflito interno por não ter escolhido cursar Psicologia. Mas como na época eu era (e ainda sou) professora de inglês, achei que Letras seria o curso que melhor legitimaria minha prática. Na fase do TCC, contei com uma professora maravilhosa que me apoiou quando escolhi trabalhar com estratégias de aprendizagem de L2, focando nas estratégias cognitivas e, mais especificamente, nos sistemas de memória. Nascia aí meu interesse por estudar a memória. No mestrado estudei especificamente o papel da memória declarativa, e no doutorado, o da memória de trabalho na aprendizagem de inglês como L2.

No doutorado tive meu primeiro contato com a neurociência quando cursei uma disciplina de Reading in the Brain com a professora Lêda Tomitch, quando ela tinha acabado de voltar do seu pós-doutorado em neurociência da leitura nos Estados Unidos. Quis muito na época fazer um doutorado-sanduíche nesta área, mas como meu filho era bebê, acabei adiando este sonho para o pós-doutorado.

Quando cheguei na UFRN em Natal em 2009, motivada a trabalhar no então recém-inaugurado Instituto do Cérebro, logo comecei a participar das pesquisas em memória e aprendizagem com o Professor Sidarta Ribeiro e sigo lá até hoje. Durante meu pós-doutorado em 2014-2015 tive a honra de trabalhar no laboratório da renomada neurocientista húngara Marta Kutas, aprendendo sobre eletroencefalografia em estudos com cognição e linguagem.

Mais ou menos na época do pós-doutorado na California, comecei a atuar em um projeto sobre transtornos de aprendizagem e de leitura na rede básica em escolas públicas (Projeto ACERTA - Avaliação de Crianças em Risco de Transtornos de Aprendizagem) e vi que como cientista eu tinha uma enorme responsabilidade social. Comecei, então, a me dedicar a fazer pesquisa para tentar mitigar os efeitos cognitivos que as injustiças sociais, às quais a maioria das nossas crianças brasileiras está subjugada, causam. Hoje integro dois projetos neste sentido: um junto ao laboratório Haskins da Universidade de Yale, especializado em dislexia, em que realizamos treinos de consciência fonêmica em crianças de 5-6 anos; e um junto ao laboratório de desenvolvimento infantil da Universidade de Irvine na California, em que fazemos treinos de funções executivas e memória de trabalho em crianças de alto e baixo status socioeconômico.


2) A partir de suas experiências e pesquisas, o que você pode nos contar a respeito do início dos estudos da neurociência da linguagem?

A neurociência da linguagem existe desde o século XIX, quando cientistas como Broca e Wernicke, entre outros, estudavam os efeitos de acidentes vasculares cerebrais nos processos de produção e compreensão de linguagem, respectivamente. Nesta época, normalmente era necessário esperar que os pacientes morressem para então analisar as lesões a partir da técnica de necropsia.

Apesar de no início do século XX já ter sido possível fazer neuroimagem estática em pacientes vivos, foi apenas nas últimas três décadas que as pesquisas em neurociência da linguagem experimentaram um grande avanço, graças às técnicas de neuroimagem funcional. Entre essas técnicas, as mais utilizadas são a eletroencefalografia e a ressonância magnética funcional, que proporcionaram uma maneira mais online e dinâmica de aferir os marcadores neurobiológicos dos processos linguísticos.


3) Qual a função das medidas neurofisiológicas, eletromagnéticas e eletrodinâmicas no âmbito da ciência da linguagem? Você poderia nos explicar, um pouco, sobre o funcionamento de cada uma?


De todas as técnicas de neuroimagem, a eletroencefalografia é a mais antiga. Dentro das pesquisas em eletroencefalografia, existe uma forma de olhar para a neurociência da linguagem que é a técnica de potenciais relacionados a eventos (do inglês, Event Related Potentials ou ERPs). Nesta técnica, a atividade pós-sináptica sincronizada de milhares de células neurais é conectada temporalmente a um estímulo linguístico, que pode ser a leitura de palavras ou sentenças. Esta técnica é especialmente sensível à resolução temporal dos processos mentais. No processamento da leitura, pode-se observar, por exemplo, desde a ativação de áreas occipitais (da visão) até áreas semânticas, sendo que tudo isso acontece na ordem do milissegundo. Pode-se, também, pedir que alguém leia uma sentença do tipo Gosto de tomar café com sapato (ao invés de café com açúcar ou leite) e observar o que acontece especificamente com a resposta eletrofisiológica dos neurônios ao deparar-se com a palavra sapato, incongruente neste contexto.

Já os métodos homodinâmicos, como a ressonância magnética funcional por imagem, relacionam uma determinada atividade neural ao aumento do fluxo sanguíneo em uma determinada região cerebral, sendo principalmente indicados no caso de perguntas de pesquisa que versem sobre a localização espacial de processos relacionados à linguagem. No caso de falantes bilíngues, por exemplo, esta técnica mostra consistentemente uma maior ativação sanguínea em áreas do córtex pré-frontal, em áreas especificamente relacionadas ao controle inibitório, uma vez que esses sujeitos estão constantemente inibindo uma de suas línguas e ativando a outra ou as outras.


4) Como são feitas as pesquisas em pacientes para identificar as áreas afetadas no cérebro?


No caso de populações clínicas, como a de disléxicos, por exemplo, normalmente se associa um comportamento, por exemplo, a leitura de palavras e pseudopalavras (bola e crafissoca, respectivamente) a um marcador neurobiológico, neste caso, uma hipoativação sanguínea na área da forma visual das palavras, no giro fusiforme esquerdo. Há também, no caso dos leitores disléxicos, o recrutamento de áreas análogas no hemisfério direito para compensar a hipoativação no hemisfério esquerdo, o que também pode ser diagnosticado através da ressonância magnética funcional.


5) Como se dá o processamento da linguagem em um paciente diagnosticado com afasia? Como acontece o tratamento? Existe uma cura?


Em relação à afasia, o acometimento dos processos linguísticos depende da área afetada pelo acidente vascular cerebral. Se o acidente acontece na região cerebral conhecida como área de Broca, no giro frontal inferior (geralmente esquerdo), o paciente apresentará problemas de expressão da linguagem, principalmente na articulação motora dos sons. Se o acidente for na área de Wernicke, no lobo temporal superior (geralmente esquerdo), o paciente apresentará problemas na compreensão da linguagem, apesar de ter a capacidade de produção intacta.

O tratamento das afasias normalmente envolve a estimulação da linguagem, o terapeuta irá construir pontes entre as habilidades linguísticas e cognitivas que permaneceram e as que foram perdidas, valendo-se da plasticidade do sistema nervoso central. Geralmente não se fala em cura para as afasias, uma vez que não existe uma medicação específica; embora haja sempre uma melhora nas sequelas. O nível dos resultados vai depender de alguns fatores como extensão da lesão, motivação e idade do paciente e de suas condições gerais de saúde.


6) Você já desenvolveu pesquisas sobre os desvios da linguagem? Se sim, houve algum momento em que você sentiu um nível maior de dificuldade por estar estudando indivíduos não típicos?


Sim, já desenvolvi pesquisas com sujeitos afásicos e disléxicos. Certamente estudar indivíduos não-típicos representa um nível maior de dificuldade. Esta dificuldade começa já na submissão do projeto ao comitê de ética, que geralmente é mais rígido em relação a estudos com essas populações, o que é perfeitamente compreensível e justificável.

A dificuldade passa também pelo recrutamento desses sujeitos, uma vez que essas populações são mais vulneráveis e, muitas vezes, não reconhecem ou aceitam a sua atipia, portanto não se voluntariando em pesquisas. Outra dificuldade é que indivíduos atípicos normalmente apresentam heterogeneidades e comorbidades dentro da mesma atipia. Por exemplo, há disléxicos que apresentam déficit fonológico; já outros apresentam déficit de atenção visual e espacial. Isso dificulta, entre outras coisas, o desenho de uma intervenção que cause efeito em todos os sujeitos.

Por outro lado, apesar das dificuldades, acho extremamente recompensador pesquisar sujeitos atípicos, uma vez que o pesquisador tem a oportunidade de mudar a trajetória e até mesmo a vida de uma pessoa. Pensem em uma criança com um nível severo de dislexia, por exemplo. Se diagnosticada e tratada precocemente, ela tem muitas chances de levar uma vida escolar normal. Se considerarmos que a leitura é a porta de entrada basicamente para todos os conteúdos na escola, o diagnóstico e remediação da dislexia a tempo, representará o marco entre o fracasso e o sucesso escolar para esta criança.


7) Durante as suas pesquisas qual foi a sua experiência mais marcante? Você poderia dividir conosco um relato dessa experiência?


Certamente a experiência mais marcante para mim foi um estudo de caso que realizei, ainda durante o meu doutorado na UFSC, juntamente com minha colega Ingrid Fontanini. Neste estudo, que foi publicado na Revista Fragmentos em 2003, acompanhamos um rapaz afásico de 18 anos, que havia acabado de sofrer um AVC, para entender se esse tipo de lesão compromete também a memória de trabalho. No caso deste paciente, os resultados dele nos três testes de span de memória realizados (operacional, leitura e sintático) foram significativamente inferiores aos resultados de outros três indivíduos controle, da mesma idade e escolaridade. Confirmamos, então, nossa hipótese de que o sistema de memória de trabalho (responsável por simultaneamente processar e armazenar informações) também parece ser comprometido na afasia.

No entanto, o que mais me marcou, enquanto pesquisadora iniciante que era naquela época, foi deparar-me com o quão importante e, ao mesmo tempo, o quão frágil nosso cérebro é. Nosso participante era frequentemente acometido por convulsões, muitas delas aconteceram na minha presença, enquanto eu coletava dados, e eu me sentia completamente fragilizada durante aqueles episódios, assim como sentia uma profunda compaixão pelos pais do rapaz, quando esses às lágrimas me contavam o quão inteligente, atlético e promissor ele tinha sido até meses atrás, antes do acidente. Enfim, percebi com este estudo que a vida na pesquisa pode ser bastante desafiadora.


8) Qual interferência que a dislexia causa no processo de aprendizagem? Quais são as metodologias utilizadas para investigar os processos cognitivos nos disléxicos?


Em um sentido restrito, a dislexia representa a ineficácia do processo de decodificação, etapa inicial da leitura, fazendo com que o leitor, incapaz de implementar a rota fonológica para a associação grafo-fonológica, acaba tentando adivinhar as palavras através da rota lexical, o que, finalmente, o impede de compreender suficientemente o que é lido. Num sentido mais amplo, a dislexia tem um efeito bastante impactante no processo de aprendizagem, uma vez que a incapacidade de ler pode afetar o acesso a todo conteúdo escolar; uma vez que a leitura é geralmente a principal, senão a única, porta de entrada de informações na escola. Neste sentido, ela impacta também fortemente a autoestima dos indivíduos acometidos, fazendo com que eles, na sua grande maioria, acabem por desistir da escola e de uma carreira acadêmica.

Como a dislexia é um transtorno multifacetado, é necessária uma equipe interdisciplinar para investigá-la assim como uma gama de testes comportamentais, idealmente associados a técnicas de neuroimagem. Como a dislexia não tem relação com déficit cognitivo, primeiramente é necessária uma triagem de QI para descartar um possível comprometimento cognitivo geral. Após esta etapa, normalmente se aplica aos sujeitos com QI típico testes de consciência fonológica, nomeação de letras, consciência fonêmica, velocidade e acurácia de leitura, leitura de palavras e pseudopalavras, compreensão de leitura e memória de curto prazo e de trabalho verbais, entre outros. Alguns destes testes podem ser executados durante alguma técnica de neuroimagem, como ERPs ou fNIRs, para tentar-se encontrar algum marcador neurobiológico que explique o transtorno. A partir daí, pode-se desenvolver intervenções para tentar mitigar os efeitos do déficit, que podem ir desde jogos de tablets para aprimorar a consciência fonêmica até treinos de memória de trabalho e funções cognitivas para otimizar o processamento cognitivo em geral. Geralmente os experimentos têm um desenho longitudinal, com coleta de dados antes e depois da etapa de intervenção.


9) Como a neurociência da linguagem pode contribuir no processo de aprendizagem de línguas (L1 e L2)?


A aprendizagem de línguas (tanto L1 como L2) se utiliza de processos cognitivos gerais, como as funções executivas e os sistemas de memória, por exemplo. A neurociência da linguagem pode nos ajudar a entender o papel desses processos cognitivos e de suas bases neurais na aquisição da nossa língua materna e de uma L2, seja de forma subsequente ou simultânea.


10) No seu artigo intitulado A Translational Framework of Educational Neuroscience in Learning Disorders , você traz a constatação de que nas crianças disléxicas, a integração da fala-letra neural foi prejudicada em comparação com a leitura fluente de crianças, porém não foi dito como se iniciou o processo que culminou nessas comprovações. Neste caso, você poderia explicar mais sobre essa pesquisa?


O nosso artigo A Translational Framework of Educational Neuroscience in Learning Disorders é, na verdade, um artigo de opinião e revisão de pesquisas. Em outras palavras, o objetivo dele não foi reportar um estudo conduzido por nós, mas sim compilar alguns estudos na área a fornecer um framework para entender-se o fenômeno da dislexia e discalculia em várias etapas, desde o diagnóstico e mecanismos envolvidos, passando pelo prognóstico e intervenção, até a comunicação dos dados de pesquisa para a comunidade leiga.

Mas para responder a pergunta de vocês, em relação aos mecanismos envolvidos na dislexia, talvez um dos achados mais robustos e consistentes é o que relaciona esse transtorno à ineficiência dos processos de decodificação, ou seja, a falhas na associação grafo-fonológica. Este achado, comum a uma representativa comunidade de cientistas, deu origem à hipótese do déficit fonológico, que relaciona as falhas nos processos fonológicos à hipoativação no córtex temporoparietal, córtex occipito-temporal e giro frontal inferior, predominantemente no hemisfério esquerdo. Em geral, os estudos concluem que os fonemas e os grafemas são armazenados de forma eficaz; no entanto, há impedimentos no momento da associação entre eles.


12) Professora, como a memória de trabalho pode impactar na aprendizagem da leitura e da escrita e existem formas de melhorar a leitura por meio de exercícios que focalizem a memória?


A memória de trabalho está envolvida tanto na aprendizagem quanto no processamento da leitura e da escrita. No caso do processamento, a memória de trabalho é subserviente a ele; isto significa que ao ler e escrever nos valemos deste sistema heurístico, uma vez que devemos computar associações grafo-fonológicas, acessar informações sintáticas e semânticas, acionar conhecimento prévio, testar hipóteses, etc. ao mesmo tempo em que armazenamos produtos intermediários dessas computações.

Da mesma forma, a memória de trabalho está envolvida na aprendizagem da leitura e da escrita, uma vez que ao aprender qualquer coisa precisamos necessariamente reestruturar constantemente o sistema que estamos construindo, em face a novas informações que confirmam ou refutam as informações que já se encontram armazenadas.

Pesquisas recentes apostam no treinamento da memória de trabalho na expectativa de otimizar a eficiência desse sistema, principalmente na infância, quando esse sistema está em desenvolvimento e, portanto, há uma ampla janela de oportunidade. Mas tais estudos ainda são inconclusivos e os resultados devem ser interpretados com cautela. Em geral, os estudos apontam para uma transferência direta, ou seja, uma melhora do treino de memória sobre a eficácia dos processamentos deste sistema, armazenamento temporário e processamento simultâneos. No entanto, há bem menos estudos apontando para uma transferência indireta, ou seja, uma melhora na velocidade e acurácia de leitura a partir dos treinos de memória de trabalho. Os estudos de treino de memória de trabalho geralmente usam jogos em tablets, celulares ou computadores; ou seja, a tecnologia é forte aliada neste processo.


13) O que você diria para alunos e iniciantes interessados na área de Neurociência da Linguagem?


Eu diria que o principal é que você já encontrou uma área na qual você tem interesse, isso é o mais importante. No caso da Neurociência da Linguagem, tem muita coisa para se fazer nesta área tanto no Brasil quanto no mundo. Principalmente o interesse pelas pesquisas translacionais, aquelas que pretendem construir uma ponte entre as neurociências e a educação, tem crescido substancialmente. No nosso país, especialmente, precisamos muito destas pesquisas, não é mesmo?

Como esta área é interdisciplinar por natureza, ela pressupõe conhecimentos advindos de outras áreas, ou seja, é importante você construir desde cedo um mindset multidisciplinar, ter um pé na biologia, um pé na psicologia cognitiva ou psicolinguística, e uma base estável na linguística.

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Agradecemos à professora Drª. Janaina Weissheimer pela disponibilidade em responder nossas perguntas.

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