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Entrevista: Prof. Dr.Tjerk Hagemeijer (Universidade de Lisboa)


Entrevista publicada no Volume 13 nº 2 (2024) da Revista Eletrónica de Linguística dos Estudantes da Universidade do Porto – Revista elingUP

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O Professor Doutor Tjerk Hagemeijer é Professor Associado do Departamento de Linguística Geral e Românica da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e investigador do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa. Possui Mestrado em Linguística pela Universidade de Lisboa e obteve, na mesma instituição, o Doutoramento em Linguística com especialização em Linguística Geral, em 2007, com a dissertação Clause structure in Santome. Ao longo da sua carreira, tem desenvolvido vários projetos de investigação sobre crioulos de base lexical portuguesa - em especial os do Golfo da Guiné - e variedades do português em África. Atualmente, é membro do Conselho de Escola da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e representante dos docentes da Área de Ciências da Linguagem no Conselho Pedagógico da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Desde 2019, ocupa, também, o cargo de tesoureiro na Associação de Crioulos de Bases Lexical Portuguesa e Espanhola (ACBLPE), tendo já sido Vice-Presidente de 2003 a 2007 e Presidente de 2007 a 2011. É ainda membro da Comissão de Curso de Estudos Africanos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi, de 2014 e 2016, investigador responsável do grupo de investigação ANAGRAMA do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa.


A entrevista ao Professor Doutor Tjerk Hagemeijer teve lugar no dia 26 de junho de 2024, no Centro de Linguística da Universidade do Porto (CLUP), tendo sido conduzida pelos estudantes Fábio Granja, Glória Reis, Rute Rebouças e Tatiana Moura. A entrevista foi preparada pelos estudantes Ana Fidelis, Fábio Granja, Marina Araújo, Pedro Raínho, Renata Rodrigues e Tatiana Moura e, posteriormente, transcrita pelos estudantes Catarina Varela, Cláudia Couto, David Garcia, Fernando Santos, Maria João Sá, Pedro Raínho, Tiago Azevedo e Tomás Moreira.


A Equipa Editorial gostaria de expressar o seu agradecimento ao Senhor Professor pela disponibilidade e generosidade na concessão desta entrevista. Foi deveras gratificante a oportunidade de testemunhar a partilha de conhecimentos linguísticos, memórias e preciosos conselhos.


Qual considera que foi a sua motivação inicial para estudar os crioulos de base portuguesa do Golfo da Guiné?


Houve algum evento ou acontecimento na sua vida que o tenha levado a interessar-se por esta área especificamente? Pensei um pouco sobre essa questão. Desde sempre, desde muito jovem, quando vivia nos Países Baixos, tive sempre um grande interesse por África. Não sabia que existiam crioulos no Golfo da Guiné, não sabia que existiam crioulos sequer, mas interessava-me. Lia obras de literatura africana, especialmente da literatura sul-africana, mas também de outros países. Lá em casa recebíamos uma revista que era da Cooperação Internacional, que continha muitas matérias que tratavam de África nas suas múltiplas vertentes. Depois da minha escola secundária, fiz uma espécie de gap year em Portugal, a aprender português para estrangeiros na FLUL. No regresso aos Países Baixos, fiz o primeiro ano da licenciatura em Língua e Cultura Portuguesa (Portugese Taal- en Letterkunde) na Universidade de Utrecht, um curso que mais tarde foi extinto devido a cortes no ensino superior. Depois desse ano, regressei definitivamente a Portugal para fazer a licenciatura em Língua e Cultura Portuguesa na FLUL. Durante a licenciatura, tinha colegas de diferentes países de língua oficial portuguesa, a quem me aliei em alguns momentos para fazer trabalhos sobre crioulos de base lexical portuguesa. Tinha colegas que eram falantes de línguas crioulas. Uma dessas colegas, que continua a ser uma pessoa muito amiga, era a Professora Beatriz Afonso, de São Tomé e Príncipe. Penso que terá sido com ela que fiz o primeiro trabalho sobre crioulos, na cadeira de Linguística Histórica, e especificamente sobre o forro (crioulo de São Tomé), que continua a ser a minha língua de eleição. Com outros colegas, que incluíam um colega guineense, fizemos um trabalho sobre o kriol (crioulo da Guiné-Bissau) na cadeira de Fonologia. Na licenciatura, também fiz a cadeira de Crioulos de Base Lexical Portuguesa com a Professora Dulce Pereira. Quando terminei a licenciatura, hesitei em seguir na área das literaturas ou da linguística. Optei pela linguística, por achar que era uma área mais objetiva do que a literatura. Candidatei-me ao mestrado em Linguística Teórica e, no dia da entrevista, perguntaram-me em que gostaria de trabalhar. Atirei barro à parede e disse ao júri que tinha pensado na aquisição do português por falantes do neerlandês ou talvez em algo relacionado com crioulos. Os professores do júri, Inês Duarte, Ernesto d’Andrade e Alina Villalva entusiasmaram-se com a ideia dos crioulos, porque não havia muito trabalho nessa área. E foi assim! Durante o mestrado, no fim do milénio passado, fui de mochila às costas para São Tomé durante dois meses, sem ter muito conhecimento das línguas que se falavam por lá. Com um gravador, ainda com cassetes, e com a ajuda de pessoas locais, comecei a gravar o forro, com muitas peripécias pelo meio. Pouco a pouco, comecei a aprender a língua, a transcrever dados, com a ajuda dos meus “capitães de campo”, primeiro Luís Morais e, depois, Caustrino Alcântara, e a descrever e analisar estruturas sintáticas da língua. Apesar de ser de base lexical portuguesa, é uma língua muito afastada do português e inacessível para um falante do português. (Para ouvir e saber mais sobre crioulos, recomendo vivamente uma visita a: https://apics-online.info) Foi assim que comecei a trabalhar na área do contacto de línguas e sobre crioulos, os crioulos do Golfo da Guiné em particular. Esta é a história abreviada da minha experiência, da minha vivência e do meu interesse por estas línguas.


Além da investigação, o Senhor Professor tem também dedicado muito do seu tempo à docência, lecionando atualmente disciplinas como Crioulos de Bases Lexical e Linguística Comparada: Português em Contacto. No seu entender, qual é a importância da relação docência-investigação? Como tem sido a sua experiência como docente-investigador até ao momento?


A primeira coisa que é preciso dizer é que a docência e a investigação são duas atividades que claramente se complementam. Para sermos docentes atualizados e também motivados, precisamos de nos manter ativos na área da investigação, porque muitas vezes o que acontece é ouvir-se: “Bem, lá vou ter que dar de novo esta matéria”. A investigação faz parte da solução para superar este problema. Queremos descobrir mais e, ao mesmo tempo, transmitir novos conhecimentos aos estudantes, pelo que um trabalho ativo na investigação é também um trabalho que contribui para nos mantermos motivados na área da docência. Também é verdade que, sendo docente, é preciso conciliar as aulas, diversas outras responsabilidades e a investigação. E há várias formas de fazer investigação: uma coisa é irmos a São Tomé com a mochila às costas e fazer trabalho de campo; outra coisa, também importante quando somos docentes no ensino superior, é conhecer os trabalhos dos colegas. Faz parte da investigação estarmos atualizados. Há ainda uma outra faceta, na parte da docência, que são as questões, fáceis ou difíceis, que os estudantes nos colocam. Por exemplo, o vosso guião tem algumas questões que não são tão simples de responder e que podiam ser perguntas feitas em contexto de sala de aula (risos). Isto obriga-nos a estar em alerta e obriga-nos também a investigar e a reinvestigar, para estarmos preparados para o desafio que é enfrentar turmas com diferentes perfis de estudantes. Portanto, creio que não há ensino superior sem esta relação de complementaridade entre a investigação e a docência. Respondendo à segunda parte da questão, tem sido, para mim, uma experiência boa e gratificante, porque Crioulos de Base Lexical Portuguesa ou Português em Contacto, na área da Linguística Comparada, ou mesmo Multilinguismo e Política Linguística, são unidades curriculares que me interessam diretamente e me permitem fazer este trabalho de investigação. Obviamente, às vezes temos que ensinar disciplinas para as quais não estamos tão habilitados ou que não nos despertam tanto interesse, mas isso também faz parte. Aí sim, é mais difícil manter esta relação estreita entre a docência e a investigação. Portanto, quando se trata - e falo por mim e em geral - de unidades curriculares mais da nossa especialização, acho que funciona bem esta relação entre a docência e a investigação. Se nos mantivermos ativos através da investigação e na relação com os estudantes, é mais fácil manter a motivação em alta.


Tendo em conta a extensa produção do Senhor Professor na área dos crioulos de base lexical portuguesa e do português em África e atendendo também ao facto de que este é, do ponto de vista linguístico, um campo de investigação relativamente recente e complexo, gostaríamos de saber quais considera serem os maiores desafios dessa área? Que tendências linguísticas, no domínio da sintaxe, tem a investigação revelado?


Esta é uma dessas perguntas difíceis e também mais pessoais. Eu diria que, quando fui para o mestrado em Linguística e quando comecei a trabalhar sobre crioulos, tive sempre como uma das motivações o facto de ser uma área relativamente pioneira. Através da minha própria investigação e do trabalho sobre crioulos, comecei a perceber que estas línguas são muitas vezes línguas menorizadas no contexto em que são faladas. Portanto, um dos grandes desafios nesta área é contribuir, de alguma maneira, para a valorização e a manutenção da vitalidade destas línguas. Não me refiro tanto a Cabo Verde ou ao cabo-verdiano, nem ao kriol da Guiné-Bissau, que têm uma grande vitalidade e são o orgulho dos falantes. Mas os outros crioulos de base lexical portuguesa, os do Golfo da Guiné, falados em São Tomé e Príncipe e Annobón, e todos os crioulos da Ásia são línguas ameaçadas.


Obviamente, cada investigador terá as suas motivações. Há quem queira simplesmente fazer descrição linguística, sem pensar muito no resto, mas, quando trabalhamos com a comunidade e quando fazemos trabalho de campo, também compreendemos a importância que uma língua tem para a comunidade e, percebendo que essa língua está de alguma maneira ameaçada, nós, linguistas, podemos ter um papel na sua vitalização e documentação. Portanto, eu acho que esse é um dos grandes desafios em relação aos crioulos de base lexical portuguesa, enquanto ainda formos a tempo, porque algumas dessas línguas vão extinguir-se, sem qualquer dúvida. Vou dar-vos o exemplo de um crioulo da Índia, o crioulo de Cananor, no Sul da Índia, que tem neste momento cinco ou seis falantes. Uma língua que tem cinco ou seis falantes é uma língua que vai desaparecer. Mas há outras situações, como o caso dos crioulos do Golfo da Guiné: o forro, por exemplo, é uma língua ainda falada por, talvez, um terço ou metade - os dados nem sempre são fiáveis - da população de São Tomé. Aqui ainda há oportunidades para tentar promover, revitalizar e dar uma nova vida a uma língua que é ameaçada pelo português. É também muito importante que estados como São Tomé e Príncipe percebam que é perfeitamente possível criar mecanismos para gerir o multilinguismo, que o multilinguismo faz bem e que não é, como se pensava no passado, algo negativo para os próprios falantes. Portanto, acho que este é, talvez, o principal desafio para quem trabalha na área dos estudos sobre crioulos.


Um outro grande desafio, mais pessoal, talvez, é tentar chegar às origens destas línguas. Como surgiram estas novas línguas, que resultam do contacto entre o português e outras línguas? E como foi este processo historicamente? De onde vieram as pessoas? Porque é que a língua é como é? Felizmente, tenho tido a oportunidade, através do meu trabalho e através de um projeto que coordenei há uns anos, de colaborar com historiadores e geneticistas, para tentarmos perceber melhor como é que surgiram os crioulos do Golfo da Guiné, como foi este processo a partir do momento do primeiro povoamento, em finais do século quinze, na ilha de São Tomé. É uma matéria fascinante, porque se cruzam pessoas, línguas e culturas, e o resultado é algo de totalmente novo, mas que não deixa de ter origens. Os são-tomenses pensam muitas vezes que têm uma origem mais ligada a Angola, mas, na verdade, do ponto de vista linguístico, genético e histórico, a sua origem está mais ligada à Nigéria. O nosso trabalho interdisciplinar colaborativo foi uma oportunidade para aprofundar o que são estas línguas, de onde vieram, e porque são como são. Enfim, como é que uma língua de base lexical portuguesa como, por exemplo, o forro, consegue ser tão diferente do português? Portanto, estes são alguns dos desafios, mas há quem tenha como desafio fazer uma boa descrição linguística, uma área em que continua a haver, para os crioulos, falta de investigação. Há inúmeros trabalhos sobre o português europeu, sobre o português do Brasil e sobre línguas mais conhecidas em geral. Mas, se alguém quiser, de facto, abraçar um desafio um bocadinho diferente e que tem uma ligação com o português, ainda que às vezes um pouco remota, os crioulos de base lexical portuguesa oferecem muitas oportunidades. Sabemos muito mais do que há umas décadas, mas ainda falta saber muito.


Sabemos que o Senhor Professor desempenhou o cargo de Presidente da Assembleia Geral da Associação de Crioulos de Bases Lexical Portuguesa e Espanhola (ACBLPE), entre 2007 e 2011. Gostaríamos de saber que balanço faz desta experiência? Que projetos gostaria ainda de ver a Associação concretizar?



Na verdade, a minha vida tem quase um cordão umbilical que me liga a esta Associação (https://acblpe.com). Eu sou também um dos fundadores da Associação, que foi constituída em 2003. Durante os primeiros anos, fui vice-presidente, na presidência do Professor Alan Baxter, agora sou tesoureiro e desempenhei também o cargo referido na pergunta. Tenho estado muito presente na Associação ao longo de duas décadas. Inicialmente, houve quem achasse que a Associação não tinha futuro, mas, na prática, tem havido bastante interesse nos encontros que organizamos em diferentes locais do mundo, na Europa, em África e também nas Américas, por vezes em colaboração com outras associações, como a Associação Brasileira de Estudos do Contacto Linguístico (ABECS)1 , no Brasil, e a Society for Pidgin and Creole Linguistics (SPCL)2 , nos Estados Unidos. Portanto, a Associação tem vitalidade e há pessoas que se interessam pelos crioulos de base lexical portuguesa e espanhola e pelas situações de contacto que envolvem o português e o espanhol, embora sejam os crioulos portugueses que têm atraído mais investigadores e interessados. Também se verifica que há sempre jovens investigadores que estão a ingressar nesta área e procuram a Associação para apresentar o seu trabalho, o que mostra que existe renovação. Portanto, a Associação, não sendo grande nem muito profissional, é uma associação de investigadores que partilham motivações semelhantes: muitos fazem trabalho de campo e querem partilhar o que descobriram. A Associação também aceita trabalhos sobre as variedades do português em África ou sobre variedades do espanhol na América, porque é sempre o contacto com estas línguas que nos move.


Qual é o futuro da Associação ou o que é que a Associação pode fazer mais ou melhor? Talvez criar uma ligação mais forte às comunidades, isto é, tentar trabalhar de uma forma mais direta com as comunidades, mostrando que as suas línguas têm valor e que estamos a desenvolver trabalho sobre elas. Mas é também importante levar o nosso trabalho aos falantes, à comunidade. Este ano, por exemplo, o encontro vai ser na ilha de São Tomé (julho de 2024). Da minha própria experiência com São Tomé e Príncipe, posso dizer que os resultados dos trabalhos de investigação nem sempre voltam às ilhas. Na verdade, as pessoas em São Tomé não sabem muito bem o que se tem feito sobre as suas línguas. Acho que se pode fazer um maior esforço para mostrar que esse trabalho existe e que o conhecimento produzido pode ser aproveitado e utilizado localmente. Isto também vai dar mais força à comunidade e espera-se que sirva de estímulo aos agentes políticos e educativos locais, no sentido de se fazer mais em prol das línguas, nomeadamente daquelas que estão ameaçadas.


Qual considera ser a importância de trabalhar para a recolha, descrição e dicionarização de línguas crioulas de origem portuguesa? No caso das línguas do Golfo da Guiné, que contam hoje com poucos falantes, há expectativa de revitalização ou o foco concentra-se em conservação e documentação?


Bom, é uma questão muito ligada às respostas anteriores. Em primeiro lugar, no caso dos crioulos do Golfo da Guiné, falando mais especificamente de São Tomé e Príncipe, estamos a falar de três crioulos autóctones: o forro, o angolar e o lung’ie (literalmente, a língua da ilha, o crioulo do Príncipe). Estas línguas apresentam desafios diferentes. O crioulo do Príncipe é, destas línguas, aquele que se encontra em maior risco de extinção. Tem, no máximo, algumas centenas de falantes, mas também é, ao mesmo tempo, objeto de uma revitalização mais ativa. Tem havido algumas iniciativas por parte do governo regional da ilha do Príncipe no sentido de promover e tentar restabelecer a transmissão entre gerações, porque as pessoas que falam essa língua são geralmente pessoas mais velhas. Neste momento, estas pessoas trabalham com os jovens nas escolas e creio que até mesmo nas creches, no sentido de os mais novos voltarem a ter contacto com uma língua que tem uma presença histórica na ilha do Príncipe, sendo património único e exclusivo desta ilha. Às vezes, tenta-se revitalizar uma língua, mas nem sempre se consegue. Nem sempre a população ou comunidade mostra vontade e interesse, porque quer falar a língua maioritária, que, neste caso, seria o português, a língua mais amplamente falada em São Tomé e Príncipe.


Portanto, uma língua com poucos falantes constitui um desafio exigente, porque obviamente se pode colocar a questão: “Para quê falar o lung’ie?”. Por outro lado, também temos cada vez mais consciência da importância que o património linguístico tem. Acho que estamos num mundo em que o bom senso dita que nos devemos pautar pela diversidade. A diversidade linguística é algo que devemos preservar, tal como queremos preservar a diversidade biológica, da fauna e da flora. Costumo dizer aos estudantes que há mais documentários sobre animais em vias de extinção do que sobre línguas em risco de extinção; todos os anos morrem muitas línguas, mas raramente é notícia. A língua é algo intrinsecamente humano e nem sempre lhe damos a devida atenção. Portanto, mesmo havendo uma pequena comunidade de falantes, como no Príncipe, existem possibilidades de revitalização. Será talvez mais fácil fazer o mesmo em relação às outras duas línguas que se falam em São Tomé e Príncipe, o forro, que tem mais falantes, e também o angolar. No entanto, neste momento, infelizmente, não há iniciativas tão dedicadas como há na ilha do Príncipe. Muitas vezes o que acontece é que estas iniciativas só aparecem quando as pessoas percebem verdadeiramente que a sua língua está a desaparecer. Em São Tomé, costuma dizer-se “os crioulos são o nosso bilhete de identidade”, mesmo aqueles que não falam ou mal falam a língua. Portanto, é, antes de mais nada, uma frase feita. Quando a oiço, costumo dizer às pessoas que, então, o seu bilhete de identidade está caducado e que é preciso ir renová-lo (risos). Enfim, o tempo dirá o que vai acontecer, mas as iniciativas em prol do forro e do angolar têm sido muito poucas. Eu próprio colaborei numa proposta de escrita para os três crioulos autóctones de São Tomé e Príncipe, mas, na prática, muito poucas pessoas escrevem nessas línguas, apenas alguns músicos e algumas pessoas ligadas à área da cultura. A maioria nem sequer sabe que há um decreto-lei que oficializou uma escrita para estas línguas. É uma realidade muito diferente da cabo-verdiana, onde a escrita da língua tem marcado o debate público e ela é utilizada na prática.


No seu projeto “Posse e localização: microvariação em variedades africanas do português (PALMA)”, refere que o objeto de estudo do mesmo se foca na contribuição da nativização do português na emergência de traços linguísticos em variedades urbanas contemporâneas faladas em Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Pode explicar, mais concretamente, o funcionamento deste processo?


Bom, agora saltamos dos crioulos para as variedades do português que são faladas em África, que também, na verdade, constituem uma área de investigação muito interessante e em que tem havido, sobretudo desde a década de 1980, cada vez mais trabalho. Especificamente nestes três países, assistimos a um processo de nativização. Quer dizer que, historicamente, as populações nesses países eram falantes de outras línguas que não o português. No caso de Angola e Moçambique, sobretudo línguas do grupo bantu; no caso de São Tomé e Príncipe, havia sobretudo falantes dos crioulos. Mas, por razões históricas, que são diversas e diferentes para cada um destes estados, o português tem vindo a ocupar um papel cada vez mais relevante. Primeiro, como língua não materna (L2), mas, sobretudo no decorrer do século XX e depois das independências, também como língua materna. Vou-vos dar o exemplo de São Tomé e Príncipe. Neste país, os crioulos autóctones de que falámos acima eram historicamente as línguas mais faladas, mas, no fim do século XIX, duas culturas ganham grande relevância: a cultura do café e, especialmente, a cultura do cacau. Nessa altura, a escravatura já tinha sido abolida e o regime colonial não conseguia mão-de-obra local suficiente para trabalhar nas plantações de cacau e de café. Foram buscar trabalhadores, os chamados serviçais ou contratados, a outros países, em particular a Cabo Verde, Angola e Moçambique. Os contratados que foram para São Tomé eram falantes de outras línguas, mas, em São Tomé, no contexto das chamadas roças (empresas agrícolas), propriedade de portugueses, começaram a utilizar o português como língua veicular. O número de contratados era tão grande que a população de São Tomé mais do que duplicou. Devido ao contexto das roças, os contratados geralmente não adotaram o forro como a sua nova língua, mas sim o português, que, desta forma, se começa a afirmar cada vez mais no contexto de São Tomé e Príncipe. Já durante a chamada Segunda República, nos anos de 1940/1950, houve alguma repressão oficiosa dos crioulos. Há muitos relatos de pessoas mais velhas que diziam que, em casa, os filhos não poderiam falar crioulo com os pais. A independência significou o fim do regime colonial, mas o acesso à língua portuguesa aumenta substancialmente, sobretudo através da massificação do ensino. E a população começa a transitar cada vez mais do português L2 para L1. Hoje em dia, em São Tomé e Príncipe, a larga maioria da população tem o português como língua materna, em consequência de uma reviravolta social e linguística que teve início em finais do século XIX.


Em Angola, também se observa uma forte nativização. Encontramos, hoje em dia, muitos monolíngues em português, sobretudo nos centros urbanos. Em primeiro lugar, no tempo colonial, a presença portuguesa foi sempre bastante significativa. Estima-se que, em 1973, 10% da população angolana era daqui, de Portugal, o que significa que havia muitos falantes do português. Depois da independência, rebentou o conflito armado que durou de 1975 até 2003, obrigando muita gente a refugiar-se nas cidades. Houve um êxodo do interior para as cidades, sobretudo Luanda, onde o português já funcionava como língua franca para os falantes de línguas bantu. No fundo, há aqui um efeito de bola de neve, com cada vez mais falantes do português L2 e novas gerações para as quais o input L2 passa a ser de L1. Este processo está em curso, com ganhos para o português e custos para as outras línguas. Em São Tomé, o processo de nativização está praticamente concluído, ou seja, poucos falantes ainda têm como L1 um dos crioulos. Em Angola, o português é hoje falado por mais de 70% da população como L1 ou L2. Por comparação, o umbundo, a língua bantu mais falada, é falada por cerca de 22% da população angolana. Tudo isto mostra bem que, num período de tempo relativamente curto, a situação sociolinguística de um país pode mudar drasticamente. Apesar de o processo de nativização em Moçambique ser mais lento, os censos mostram que há cada vez mais falantes do português, incluindo cada vez mais falantes L1.


Portanto, temos de estar preparados para um futuro que é sobretudo em língua portuguesa nestes estados, o que significa que é importante investigar o que os falantes fazem com o português do ponto de vista linguístico. Isto pode ser importante para efeitos educativos, por exemplo. Como é que abordamos as diferenças relativamente à norma do português europeu em vigor, mas que não é, geralmente, a norma praticada? Como é que se pode sanar esta tensão que existe entre uma norma de fora e o uso da língua? Enfim, temos de olhar com especial atenção para estes novos falantes nativos e fazer o nosso trabalho de investigação, para tentar perceber o que são e o que vão ser estas novas variedades no futuro.

Será que se vão aproximar do português europeu? Será que se vão afastar? Será que podem tornar-se independentes, como aconteceu, por exemplo, com o inglês americano? Já agora, o português do Brasil é também um ótimo exemplo que mostra que os estados e a sua língua, mesmo que seja uma língua com um passado colonial, podem adquirir a sua independência linguística. Havendo cada vez mais falantes nativos do português em África, o debate em torno desta questão também se vai tornar cada vez mais premente: será que Angola deve seguir eternamente a norma do português europeu? Ou será que quer olhar para o que é o português de Angola e, eventualmente, com o tempo (ainda há muitos constrangimentos), considerar a possibilidade de conquistar uma maior autonomia para a sua própria realidade linguística? Em Angola, estas questões começam a marcar a agenda, mas só o futuro dirá qual será o destino da língua portuguesa em Angola. Esta questão da descentralização das constelações pluricêntricas é uma questão global que não se esgota na língua portuguesa.


Apesar das variantes regionais distintas, o crioulo cabo-verdiano é considerado como uma única língua. Que critérios linguísticos são normalmente usados para determinar se as diferentes variantes do crioulo, como as encontradas em Cabo Verde, devem ser classificadas como dialetos separados ou como parte de um único idioma?


Como sabem tão bem como eu, o conceito de língua é o que nós queremos que seja. Portanto, uma língua é uma construção, é um conceito bastante abstrato - para definir o que é uma língua, não podemos simplesmente basear-nos em critérios linguísticos. Provavelmente, se a Galiza fizesse parte de Portugal, iríamos dizer que se falava ali uma variedade do português. Não é aceitável, porque o galego é uma língua oficial, consagrada na constituição de um outro estado. Quando olhamos para um contexto como o de Cabo Verde, vemos que há nove ilhas habitadas com variedades do cabo-verdiano por vezes bastante distintas, sobretudo entre o Barlavento e o Sotavento, por exemplo a variedade da ilha de São Vicente e a da ilha de Santiago. Em Cabo Verde, estas diferenças têm inclusive resultado num debate sobre qual deve ser a escrita e a norma para o cabo-verdiano. Esta questão já está resolvida para muitas línguas, como o português, mas línguas que começaram a ser planeadas em tempos mais recentes ainda estão a passar por um processo de normalização. Como é que se vai escrever a língua, qual é a variedade da língua que se vai adotar, se é a desta ou daquela ilha, se é da capital ou de áreas mais rurais, se é o crioulo, como as pessoas às vezes dizem, mais “puro”, mais “conservador”, mais “fundo”, etc. Portanto, colocam-se desafios que não se colocam da mesma maneira para línguas como a minha (o neerlandês), o português e muitas outras. Mas, obviamente, Cabo Verde é um estado e, apesar da variação, que existe em todas as línguas, tem interesse em manter uma certa unidade em relação à língua materna das pessoas: todos os cabo-verdianos têm uma dessas variedades como a sua língua materna e é do interesse do Estado cabo-verdiano chamar ao conjunto das variedades língua cabo-verdiana. É uma decisão política. Podemos imaginar muitos cenários: poderíamos imaginar que os Açores conseguissem a independência em relação a Portugal e que talvez quisessem fundar a sua própria língua - o açoriano. Este exemplo é um bocadinho absurdo, mas pensem, por exemplo, na antiga Jugoslávia, onde falavam uma língua que era rotulada de servo-croata e que todos designavam como servo-croata. Mas, desde a dissolução da Jugoslávia, falamos cada vez mais em croata, umas das línguas oficiais da União Europeia, e sérvio, que um dia também poderá vir a ser uma das línguas oficiais da União Europeia. O sérvio e o croata estão num contínuo dialetal e são praticamente o mesmo, porém separados por uma fronteira política. No caso de Cabo Verde, existe um contínuo dialetal insular complexo, mas do ponto de vista político é do interesse do Estado manter esta unidade que é a língua cabo-verdiana e ter uma única norma.


É conhecido que Cabo Verde tem debatido o processo de oficialização da língua crioula como um grande dilema político e linguístico com forte divisão de opiniões. O Senhor Professor gostaria de comentar este assunto e seus possíveis impactos sócio-educacionais?


Não gostaria, mas vou (risos). Em primeiro lugar, é importante valorizar que os cabo-verdianos têm debatido muito entre eles em relação à sua língua materna - acho que isso é um sinal da própria vitalidade da língua (é, realmente, o crioulo de base lexical portuguesa com mais vitalidade, tanto em Cabo-Verde como na diáspora). É um claro sinal positivo em relação à própria língua. É também verdade que se trata de instituir algo novo: a língua oficial é, neste momento, o português, mas prevê-se a oficialização do cabo-verdiano num futuro não tão distante. E colocam-se questões (de certa forma já ultrapassadas) como: “Como escrever a língua?”, “Qual é a variedade que devemos adotar?”. É positivo que haja, de facto, este debate, que as pessoas tenham orgulho de saber falar crioulo, de serem cabo-verdianos, falantes do crioulo. Em São Tomé, por exemplo, existe uma relação diferente entre as pessoas e as línguas. Por vezes os são-tomenses mostram ter alguma vergonha de serem falantes do crioulo (e do português que falam). É uma realidade completamente distinta. Na minha opinião, o mais importante nestes processos é agir. Não vale a pena debater eternamente sobre se devemos escrever uma determinada palavra com “c” ou com “k”, ou de uma determinada forma ou de outra, mas sim tomar uma decisão política. É isso que faz progredir as línguas. Ninguém espera que o cabo-verdiano hoje seja igual ao cabo-verdiano de amanhã, tal como o português de hoje não é igual ao português de ontem. As línguas mudam e a normalização das línguas tem de ser revista de tempos a tempos.


Em Portugal, passou-se (ou passa-se?) por uma reforma ortográfica polémica, mas isto faz parte da vida das línguas. Na minha opinião, haver um debate sem que se tomem decisões para um futuro melhor da língua não faz muito sentido. É preciso agir, é preciso implementar e, se não correr tão bem, revê-se, faz-se um trabalho de revisão, adapta-se: este parece-me ser sempre o caminho. Portanto, eu ficaria muito contente se, em São Tomé e Príncipe, houvesse uma atitude muito mais proativa em relação às línguas, como existe em Cabo Verde, para que as pessoas tomassem mais consciência dos desafios que a língua enfrenta e da importância que é tomar medidas efetivas para resolver esta questão da sua menorização.


Portanto, sim, o debate é bom, mas não pode ser um eterno politiquês. É preciso que se avance, para que, de facto, a língua possa beneficiar, que não seja cada uma das capelinhas que quer que seja assim ou assado, mas que, de facto, a própria língua colha os frutos das decisões coletivas, da oficialização. No caso de Cabo Verde, provavelmente também haverá instituição do cabo-verdiano no ensino: já houve uma experiência-piloto de ensino bilingue, mas faz muito sentido que se faça mais. Sabe-se que a alfabetização e o ensino na língua materna produzem sempre resultados melhores do que a alfabetização e o ensino em línguas que não sejam as línguas maternas da população.


Ocorre-me o exemplo da Guiné-Bissau. Neste país, mais ou menos 90% da população fala o kriol (ou guineense), de acordo com o censo de 2009. E apenas uns 30% da população indicou saber falar português. O português é a língua oficial, é a língua das escolas, mas, na verdade, muitos guineenses não têm, a não ser no contexto da escola, contacto com a língua portuguesa. A Guiné-Bissau é, na minha opinião, um exemplo paradigmático de um estado onde funciona uma política linguística errada. É um país com muitos problemas, de vários níveis, mas que poderia seguir um caminho diferente se adotasse o kriol como língua oficial e se começasse a alfabetizar e a ensinar nessa língua. Isso não significa que o português não possa manter-se como uma língua estrangeira especial, como uma língua que também faça parte do currículo. Talvez não como o inglês aqui em Portugal, mas como uma língua que tem um estatuto histórico especial no contexto da Guiné-Bissau. Portanto, não se trata de uma proposta de “acabar com a língua portuguesa”. É, na verdade, uma política linguística que pensa mais na população e também no desenvolvimento, porque a questão da língua está ligada ao desenvolvimento. É preciso criar mecanismos para as pessoas poderem beneficiar da alfabetização e do ensino na sua língua materna.


Em Moçambique, depois da independência, adotou-se o português como única língua oficial e os problemas de insucesso escolar e de abandono escolar não demoraram a manifestar-se. Ou seja, Moçambique percebeu que o papel exclusivo do português colocava em causa o desenvolvimento. Na década de 1990, implementou-se um projeto de ensino bilingue, que envolvia o português e 16 línguas bantu que se falam em Moçambique. Nos primeiros anos da escolaridade, as crianças começam a aprender a ler, a escrever, a fazer contas, etc., na sua língua materna. O português também faz parte do currículo, porque, depois, a partir do quarto ano, há uma transição para o ensino exclusivamente em português. Portanto, é uma política de transição da L1 para a L2, que é sempre preferível àquela política em que um aluno, um jovem de seis anos, chega à escola e, de repente, vai começar a escolaridade numa língua com a qual teve, às vezes, pouco ou nenhum contacto prévio.


Em suma, no caso dos países de língua oficial portuguesa em África, vemos diferenças, por exemplo, do ponto de vista da nativização e do ponto de vista das políticas linguísticas. Penso que é importante que os diferentes Estados reflitam sobre o que é que é de facto melhor para a população, como é que a linguística pode contribuir para o desenvolvimento. Esta questão é muitas vezes marginalizada ou secundarizada. Mesmo no caso de Moçambique, é discutível se é ideal seguir o modelo adotado por várias ex-colónias britânicas em África, que é de começar a escolaridade na língua materna e depois transitar para a língua oficial, o inglês, porque é preciso reconhecer que, apesar de tudo, o objetivo final é a assimilação à língua europeia. Por outras palavras, é legítimo questionar se não poderia haver um outro tipo de modelo bilingue mais continuado, para promover não só, em última instância, o inglês ou o português, mas também as línguas maternas que as populações falam, promovendo, assim, a diversidade linguística. Como provavelmente sabem, perto de metade das línguas faladas atualmente encontra-se ameaçada. É muito fácil, olhando para os espaços onde o português é a língua oficial, sinalizar línguas que vão desaparecer ou que sobrevivem com cada vez menos falantes. Basta pensar na lição de história do impacto negativo que as línguas europeias tiveram no continente americano em relação às línguas ameríndias.



De que forma aborda a questão da variabilidade linguística entre os crioulos que compartilham uma mesma região? Na sua análise, qual é a extensão em que essa variabilidade pode ser atribuída a influências históricas, sociais e culturais?


Esta é daquelas perguntas para as quais só há uma resposta longuíssima (risos). Bom, é claro que, olhando para os crioulos, só conseguimos compreender o cenário completo olhando para diferentes aspetos linguísticos, históricos, sociais, etc. das diferentes línguas que entraram em contacto. Falando mais concretamente dos crioulos do Golfo da Guiné, sabemos que se formou uma protolíngua, o protocrioulo do Golfo da Guiné, que surgiu na Ilha de São Tomé e que, depois, deu origem a quatro línguas diferentes ao longo do século XVI. Ou seja, é um pouco como a história do latim (vulgar) e das línguas românicas, mas num passado mais recente. Compreender esta protolíngua implica que vamos ter de olhar para todos os ingredientes: para o português - não o português do século XXI, mas sim o português médio e clássico dos séculos XV, XVI -, para diversas línguas africanas e, idealmente, também para a história destas línguas, o que muitas vezes é difícil, para tentar reconstituir o que levou à formação da protolíngua. Outras áreas de conhecimento, como a genética e a história, também podem ajudar a explicar as origens populacionais, mas a linguística tem, de facto, um papel primordial. Em termos de variação linguística, as línguas diferentes, que resultam da difusão de uma protolíngua no tempo e no espaço, são sempre o resultado de uma conjugação de fatores, linguísticos e não só, que também se vão manifestar linguisticamente. O protocrioulo do Golfo da Guiné, que deu origem a quatro crioulos, existiu e pode ser reconstruído. Enquanto linguistas, podemos olhar para os quatro crioulos do Golfo da Guiné, compará-los e analisar o que têm de semelhante e o que têm de diferente: o que têm de semelhante provavelmente tem a ver com uma origem partilhada, ou seja, se há um determinado som que é comum aos quatro crioulos nos mesmos contextos, provavelmente este som terá existido na protolíngua; se há uma determinada palavra que é diferente num dos quatro crioulos para referir um determinado conceito, provavelmente esta palavra não fez parte da protolíngua. Reconstituir traços gramaticais e lexicais da protolíngua a partir da variação existente entre línguas contemporâneas que sabemos que partilham uma origem comum permite-nos pensar um pouco naquilo que terá sido o antepassado comum destes crioulos.


As diferenças entre línguas que partilham a mesma origem aumentam com o seu isolamento no espaço e no tempo, devido a diferentes caminhos de evolução interna e devido a fatores externos, como um novo contacto, por exemplo, com a língua lexificadora ou outras línguas, mas também devido a fatores sociais difíceis de prever. Os crioulos do Golfo da Guiné descendem de um tronco comum, mas são hoje línguas que não são mutuamente inteligíveis, porque cada uma foi construindo a sua própria história.


Alguns nomes importantes dentro da crioulística não seguem o paradigma de diferenciação tipológica entre crioulos e não-crioulos, difundido sobretudo por Bickerton. Michel DeGraff, por exemplo, considerara o crioulo haitiano uma língua românica. O Professor aborda esta discussão no artigo “The Gulf of Guinea Creoles: a case-study of syntactic reconstruction”. Poderia discorrer sobre a potencial visão dos crioulos de base portuguesa como pertencentes a este ramo da família indo-europeia?


Sim, é uma questão complexa e polémica, com um historial entre os estudiosos das línguas crioulas e muitas vezes marcada por visões opostas ou diferentes. Costumo dizer nas aulas que o conceito “crioulo” não nos ajuda muito. O facto de aplicarmos o termo “crioulo” a um conjunto de línguas é, na verdade, uma criação histórica, que não corresponde, em primeiro lugar, a uma realidade sócio-histórica comum: as línguas a que chamamos crioulos têm muitas vezes histórias sociais muito diferentes. No caso do Atlântico, temos frequentemente uma história ligada à escravatura e às plantações; no caso da Ásia, uma história mais ligada ao comércio (que não de seres humanos) e à religião. Portanto, não constituem, desse ponto de vista, uma classe, mas também não constituem, na minha opinião, uma classe tipológica do ponto de vista da linguística, mas aí reside a controvérsia. Sabemos hoje o suficiente de línguas crioulas para perceber que tipologicamente são línguas, por vezes, muito distintas entre si. O forro de São Tomé e o cabo-verdiano em Cabo Verde são crioulos de base lexical portuguesa em África com léxico maioritariamente derivado do português, porém, tipologicamente, apresentam características muito distintas. Os criadores ou fundadores destas línguas não eram os portugueses, eram falantes de outras línguas que deixaram, em menor ou maior grau, marcas das suas línguas maternas.


A segunda parte da resposta tem a ver com a classificação genética. E aí eu não tenho muitas dúvidas, porque os crioulos de base lexical portuguesa, se nós aplicarmos o Método Comparativo que se utiliza tradicionalmente na linguística histórica, são claramente línguas filiadas na sua língua lexificadora, o português. Em geral, mais de 90% do léxico de um crioulo português tem origem no português. Assim, cumpre-se o primeiro passo: a existência de cognatos, palavras que ligam estes crioulos ao português. O segundo passo é identificar correspondências de som regulares, o que é fácil de comprovar. Vemos que há regularidade na forma como as palavras do português foram integradas no léxico do cabo-verdiano e no léxico do forro. O forro caracteriza-se pela despalatalização: sola ‘chorar’; sabi ‘chave’ e son para ‘chão’; na Alta Guiné, em Cabo Verde e na Guiné-Bissau, a solução nos mesmos contextos é uma africada: txora, txabi, txon.


O Método Comparativo aplica-se às línguas, mas ignora a história: não leva em conta, por exemplo, se os crioulos foram adquiridos como L2. No caso do inglês, também há um forte historial de aquisição L2 e reestruturação profunda, mas ninguém diz que o inglês não é uma língua germânica, pois não? Seguindo os factos e aplicando o Método Comparativo que utilizamos para classificar as línguas no mundo, temos de dizer de uma forma muito clara que os crioulos de base lexical portuguesa são línguas que estão na linhagem do indo-europeu, das línguas itálicas, ou românicas, se quiserem, descendendo em última instância do português. A mesma genealogia aplica-se ao haitiano, que, neste caso, descende do francês; se for o jamaicano, descende das línguas germânicas, mais especificamente do inglês. Na minha opinião, não há dúvidas na questão da filiação. Queria também dizer que um dos argumentos na base deste debate sobre a filiação tem a ver com o facto de os crioulos terem uma história peculiar de contacto e de serem gramaticalmente bastante diferentes das suas línguas lexificadoras. Embora isso seja verdade, dentro das diferentes famílias linguísticas também encontramos línguas que são muito diferentes entre si: o islandês e o inglês são duas línguas germânicas muito diferentes e, em outras famílias, há línguas cujas diferenças são ainda muito maiores do que as diferenças entre o islandês e o inglês. Portanto, esse argumento não funciona. Para efeitos de classificação, temos que seguir o mesmo método que aplicamos às outras línguas e não cair na tentação de fazer dos crioulos um grupo diferente das outras línguas do mundo. Aliás, o próprio termo sócio-histórico “crioulo” parece ser um obstáculo à integração das línguas com este “rótulo” nas línguas naturais do mundo. Vejam que, curiosamente, temos um atlas online para “crioulos” - Atlas of Pidgin and Creole Language Structures (APiCS)3 - e um atlas para as línguas do mundo - World Atlas of Language Structures (WALS)4 , sem “crioulos”.


Tendo o Senhor Professor construído uma longa e relevante carreira trabalhando com os crioulos de base portuguesa, quais são os conselhos que poderia dar aos futuros linguistas que também almejam seguir uma vida académica, em especial àqueles que se querem dedicar ao estudo destas línguas?


Em primeiro lugar, eu diria, como já tinha dito num outro momento, que, se alguém tiver realmente interesse em abraçar algo diferente, uma área que é mais pioneira, em que se podem fazer trabalhos pioneiros, a área dos crioulos é excelente para iniciar a investigação. Da minha própria experiência, eu diria que o melhor que se pode fazer é trabalho de campo. No início da entrevista, falei da viagem que fiz a São Tomé no fim do milénio passado. Essa e as viagens seguintes para São Tomé foram momentos que me marcaram, porque nos sentamos com pessoas que, de forma muitas vezes voluntária, oferecem algo de si, que é a sua língua, o objeto da nossa investigação. São momentos em que criamos uma ligação com o nosso objeto de estudo. Não só com a língua como também com as pessoas. Considero importante tentar devolver algo do meu trabalho às comunidades e sobretudo pensar em formas de manter essas línguas minoritárias. Eu não quero, mas não digo isso de forma egoísta, que o meu objeto de estudo desapareça. A melhor forma de criarmos um laço forte com esta área de investigação é fazer trabalho de campo, que é sempre uma experiência única. Não é fazer aquela tese, aquele trabalho teórico em que vamos abrir todos os livros que estão na prateleira e tentar fazer algo com isso. Não. Isso também é importante, mas o trabalho de campo, a recolha de dados, o olhar para os dados e não olhar primeiro para todas as teorias e ver se conseguimos encaixar os dados, tudo isso é fundamental para fazermos algo diferente e algo que nos mantenha sempre motivados para o nosso trabalho.


Na primeira vez que fui a São Tomé, entrevistei várias pessoas, mas trabalhei mais com um senhor mais velho que era um terapeuta tradicional. Era uma pessoa que tinha um grande conhecimento das plantas e ajudava as pessoas que iam de diferentes partes de São Tomé em busca da sua ajuda: esse senhor chamava-se Sun (Sr.) Sabino. Entre as suas massagens e terapias, concedia-me essas entrevistas. Ele contava histórias tradicionais, intercaladas com canto. Era um profundo conhecedor das histórias tradicionais de São Tomé e Príncipe (as soya). Numa das sessões, disse uma frase (em forro) em relação às gravações de que nunca me esqueci: “eu posso morrer, mas a minha voz continuará”. Ou seja, deixava-se gravar de forma abnegada, em prol da sua voz que era a sua língua. Ele, entretanto, já faleceu, já tinha uma idade avançada naquela altura, mas, de facto, tal como ele disse, a sua voz continuará. A sua voz está presente no corpus que recolhi, nas análises que eu faço dos dados e é, de facto, uma voz que permanece na minha investigação e que me tem ajudado a retribuir com o meu trabalho. Portanto, insisto no trabalho de campo. Ter coragem de pegar em equipamento de gravação, preparar tudo, levar questionários - ou não: eu fui um bocadinho à toa a primeira vez que fui a São Tomé - e meter as mãos na massa, conhecer uma nova realidade, porque uma língua é muito mais do que só um conjunto de palavras. É toda uma cultura. Enfim, é através do trabalho de campo que vamos descobrir mais, não só sobre a língua, mas também sobre tudo o que envolve a língua. No meu caso, fui como linguista para recolher dados, para fazer investigação linguística, mas acabei não só por fazer esse trabalho como também comecei a investigar as origens do forro e dos outros crioulos do Golfo da Guiné, colaborando inclusive com outros linguistas, geneticistas e historiadores, participei numa proposta de escrita para os crioulos de São Tomé e Príncipe e sou coautor de um pequeno dicionário do forro.


Quando criamos um laço com a língua e com a comunidade que a fala, percebemos, com o passar do tempo, que valeu a pena investir em algo que é um pouco diferente daquilo que habitualmente se faz. Incentivo todos os jovens estudantes a arriscar um bocadinho, a pensar e agir fora da caixa, a sair da sua zona de conforto (é preciso para o trabalho de campo!) e adotar, para investigação e para a vida, um crioulo de base lexical portuguesa.


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Agradecemos à Revista elingUP pela gentileza e disponibilidade em sua parceria com o Linguisticamente Falando.

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